Porque é necessário ler José Saramago?
Para além de um prazer e consolo, ler José Saramago é uma necessidade e dever interior porque gera inquietação, reflexão crítica e vontade de transformação.
Visível na sua intervenção na vida pública, sobretudo através de crónicas, entrevistas e romances, Saramago considera “que o mundo precisa de ser mais humano” e que “Falham os que mandam e falham os que se deixam mandar” (Aguilera: 153) [1].
Voz indignada perante o desconcerto e o espetáculo do mundo e as atitudes de indiferença, passividade, resignação, aparência, status quo, competição. Cegueira branca ou mal branco que resulta da incapacidade mental das pessoas se desassossegarem e agirem perante quem sofre.
Assume uma atitude comprometida com o seu tempo e instiga, concidadãos e leitores, à consciencialização, à coerência e à mudança.
A ação - “O que uma pessoa faz” (Aguilera: 51) - define quem somos, a nossa identidade, o nosso nome.
Advoga sentido de respeito e responsabilidade perante os outros e a comunidade, que devem ser tidos em conta em todas as ações, individuais e coletivas. “O mundo precisa de uma forma diferente de entender as relações humanas e é a isso que eu chamo insurreição ética. Uma pessoa tem de perguntar a si própria: o que é que estou eu a fazer neste mundo?” (Aguilera: 121).
A insatisfação perante todas as coisas traduz-se em elevada exigência perante si próprio: “Não te permitas nunca ser menos do que aquilo que és” (Aguilera: 51).
Arte e literatura, tal como conhecimento e tecnologia, não são neutros, devem contribuir para uma existência cívica e humanista.
Dessacralizou a literatura e o trabalho de escritor, pois onde vai o escritor vai o cidadão e a ambos interessam todas as coisas.
O vínculo espontâneo aos animais, árvores e paisagem de menino tornou-o voz ativa em prol da proteção e defesa dos ecossistemas naturais e equilíbrio ambiental, advogando um humanismo que inclui todas as pessoas, seres vivos, animais e minerais.
Sobretudo a partir de Ensaio sobre a Cegueira (1995), assume como objetivo indagar sobre a condição do ser humano contemporâneo - o que somos, o que afeta a sociedade, o que nos rodeia – assumindo-se como voz universal. Nos seus romances os personagens – José, Blimunda, mulher do médico, cão das lágrimas – são amplos/ gerais e complexos, não se deixando reduzir a uma única característica ou circunstância. A sua escrita torna-se depurada e austera, como se estivesse “mais interessado na pedra de que a estátua é feita”, do que nas suas roupagens.
A estrutura concetual dos seus romances, aproxima-os do ensaio filosófico. Cultiva espanto, dúvida, interrogação, atitudes que aproximam a sua escrita da filosofia, que considera dever ser direito humano universal.
A sua vida é matéria literária pois, tal como Alexandre O’Neill, “A vida interessa-me, o que não me interessa é a vidinha” [2].
A sua memória e raízes é marcada pelo mundo das coisas pequenas e concretas da aldeia simples da Azinhaga (Golegã, Ribatejo) onde nasceu e à qual regressaria nas férias todos os anos da sua juventude. O Casalinho dos seus avós maternos, Josefa Caixinha e Jerónimo Melrinho, os primos, os primeiros amores e a comunidade, o rio Almonda, lagartos, porcos, rãs, ninhos, olivais, milheirais, os seus pés descalços que caminhavam sozinhos ao acaso. Expressa-o literariamente, sobretudo em As pequenas memórias (2006) e em crónicas como A bagagem do viajante (1973) ou Deste mundo e do outro (1971). “Apenas via as coisas do mundo e gostava de vê-las. Nunca fui de pequenas imaginações. Eu não me interessava por fantasias, mas pelo que ocorria”, recorda (Aguilera: 29).
Mudou-se com a família para Lisboa ao ano e meio, esteve em dez moradas em pouco mais de dez anos. Em adolescente “Só pude fazer dois anos de liceu [Gil Vicente], depois tirei um curso de serralharia mecânica na Escola Afonso Domingues. Ainda exerci [numa oficina de automóveis]; depois fui desenhador técnico, depois entrei para as burocracias do Estado; depois trabalhei durante doze anos na Editorial Estúdios Cor […]. Depois vieram os jornais…” (Aguilera: 78, 79): Diário de Lisboa (editorialista) e Diário de Notícias (diretor-adjunto).
“Sou autodidata. […] A minha educação literária foi feita nas bibliotecas públicas [sobretudo na Biblioteca Palácio das Galveias], porque na minha casa não tinha um único livro, a minha mãe era analfabeta” (Aguilera: 91).
Vendo “concretizar-se o cenário de pesadelo anunciado pela ficção científica: alguém encerrado no seu apartamento, isolado de todos e de tudo, na mais angustiosa solidão, mas ligado por internet e em comunicação com todo o planeta”, sente nostalgia desta biblioteca do Campo Pequeno (Lisboa) em que a relação com o conhecimento passava por um mediador, o bibliotecário e por uma comunicação direta entre pessoas unidas com o mesmo propósito [3].
As suas origens humildes e formação irregular fá-lo descobrir tardiamente - a partir de Levantado do Chão (1980), com cinquenta e oito anos - a sua própria voz literária.
Aos 63 anos encontra o amor da sua vida, Pílar de Río, jornalista de 36 anos.
Das pequenas coisas chega-se às grandes coisas e, a 8 de outubro de 1998, a Academia Sueca atribui a José Saramago o Prémio Nobel da Literatura. No discurso que profere critica o não efetivação da Declaração Universal dos Direitos Humanos [4] e anuncia a Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos [5].
Para além do cuidado e projeção da sua obra, a Fundação José Saramago, criada em 2007 e presidida por Pilar, tem como desígnio, por vontade expressa do escritor: “que a fundação intervenha na vida. Será uma pequena voz, eu sei. Não poderá mudar nada, também sei. Mas queremos que funcione como se tivesse nascido para mudar tudo” (Aguilera: 94).
Com o mesmo propósito da casa da obra de Saramago, a biblioteca escolar enquanto casa da leitura, imaginação e curiosidade, pretende abrir, a todas as crianças e jovens, as portas para a compreensão do mundo e de si próprias (Aguilera: 162) para uma vida livre e ética, em que cada um possa realizar as suas potencialidades.
Referências
1. Aguilera, F. (2010, nov.). José Saramago nas suas palavras (2.ª Ed.). Editorial Caminho.
2. Alves, C. (1986, 23 ago.). O'Neill: "Não me interessa a vidinha", in: Expresso [jornal, p. 16]. nº 721.
3. Saramago, J. (2004). Informação: A quadratura do círculo. EFE, in: Clube de Jornalistas (2010, 30 jun.). Saramago, o jornalismo e a quadratura do círculo. CJ. https://www.clubedejornalistas.pt/?p=2860 [Seminário organizado pela agência de notícias EFE - Espanha, 2004]
4. Saramago, J. (1998, 7 dez.). José Saramago – Nobel Lecture: De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz. The Nobel Prize. https://www.nobelprize.org/prizes/literature/1998/saramago/25345-jose-saramago-nobel-lecture-1998/
Outras versões do discurso de José Saramago na entrega do prémio Nobel da Literatura na Academia Sueca, em Estocolmo, a 7 de dezembro de 1998:
Saramago, J. (2018). Discursos de Estocolmo [Texto]. Porto Editora. https://www.portoeditora.pt/responsive/landing-pages/saramago/imagens/pdf/saramago_discursos_de_estocolmo.pdf
Saramago, J. (2018). Discursos de Estocolmo [Vídeo]. Fundação José Saramago. https://www.youtube.com/watch?v=0F-fupSNmJk
5. Fundação José Saramago. (2017). Carta Universal de Deveres e Obrigações dos Seres Humanos. https://www.josesaramago.org/carta-universal-dos-deveres-e-obrigacoes-dos-seres-humanos/
6. Fonte da imagem: Saramago, J. (2008). Biografia. Fundação José Saramago. https://www.josesaramago.org/biografia/